Bomba-relógio ativada

Era uma vez um loiro nórdico poliglota cristão e nacionalista que, por entender que o desemprego e a crise econômica estão relacionados com a imigração de pessoas de outras culturas, resolveu mostrar seu amor à pátria ao matar dezenas jovens simpatizantes do partido da situação.

Era uma vez um bloco econômico poderoso, criado para fazer frente ao dólar, que resolveu colocar numa mesma balança diversos países, antigos rivais, hoje “parceiros”, países completamente diferentes, de economias distintas, estruturas sociais e administrativas distintas, perfis, leis, culturas e padrões distintos.

Era uma vez jovens árabes, desiludidos, desempregados, indignados com ditaduras decanas de presidentes de mandavam e desmandavam em seus países como bem entendiam, e assim, numa insustentável fúria, resolvem liderar revoltas políticas, pagando com milhares de vidas a reestruturação de democracias.

Era uma vez o crescente número de grupos paramilitares no continente africano, onde cada dia as guerras tribais, ignoradas pelo mundo rico, começam a trazer consequências cada vez piores, com massacres, crimes contra humanidade, muito facilitado pelo comércio clandestino de armas produzidas e subsidiadas por indústrias daqueles países ricos.

Era uma vez minorias (mas são milhões de pessoas) acuadas com as guerras civis em tantos países árabes e africanos, começam a debandar, fugir para o país vizinho, só que muitos vizinhos enfrentavam os mesmos problemas, e outros, de forma mais desesperada, superlotam fronteiras e navios com o sonho de cruzar o mediterrâneo e serem aceitos como exilados para ter uma vida nova naqueles mesmos países que tentaram a partir de 1999, juntos mas diferentes, serem poderosos, mas hoje enfrentam uma enorme crise.

Era uma vez milhões de jovens europeus, acostumados a ter o primeiro emprego depois dos 25 anos de idade, depois de concluir uma pós graduação e mestrado, e agora se vêm com pouquíssimas oportunidades de trabalho, se vêm desempregados, despreparados para encher laje ou limpar banheiro, algo que os imigrantes nunca recusaram, e agora vão para ruas protestar por emprego, protestar porque não têm no bolso a moeda que que nasceu com a missão de ser maior que o dólar, protestar contra a abertura para novos países do dito “poderoso bloco”, onde os mais extremos revoltados inflam ideias nacionalistas, racistas, num protecionismo sanguinário.

Era uma vez um país de cultura milenar, que se fechou por décadas, comeu capim, viveu o isolamento e misérias mas, de forma totalitária, condicionou um povo extremamente trabalhador e competitivo, e assim, com muita paciência, se preparou para ser a fábrica do mundo, antes ridicularizado por fazer calculadoras ching-ling e atualmente com pessoas altamente capacitadas, produtos de todas as qualidades, do lixo ao luxo, para atender qualquer tipo de consumidor interno ou em qualquer parte do mundo, atraindo centenas de fábricas, muitas daquele continente que tentou unir o diferente para ser o bloco global dominante e ter uma moeda poderosa, mas que agora se vê com uma cadeia industrial enfraquecida e com trabalhadores extremamente caros, insatisfeitos, com poucas oportunidades e que agora protestam sem oferecer nenhum tipo de solução.

Era uma vez um mundo completamente conectado, interligado, permitindo pessoas, antes distantes, conversar sobre tudo e todos instantaneamente, assim encontrar mentes e ideias similares, capazes tanto de construir como destruir, capazes de difundir pensamentos, muitos preconceituosos, protecionistas, nacionalistas, extremistas religiosos, raciais, homofóbicos, capazes de explodir, se explodir, atirar, matar, muito por causa de insatisfações com a crise, com o desemprego, com a recessão econômica achando que a lojinha do judeu, do islâmico, do indiano, do chinês ou seja lá de quem está “roubando” o emprego daquele que nasceu ali, filho de pessoas que nasceram ali, àqueles do tal sangue azul, que agora difundem  na internet ideologias contra a “invasão” e a mistura racial.

Era uma vez partidos políticos de extrema direita crescendo de forma preocupante naquele continente que tentou há pouco mais de uma década juntar economias diferentes, mas que de certa forma encontrou em cada país simpatizantes contrários a tal abertura social, pessoas que acham que proteger uma cultura é se fechando para as demais, pessoas antissociais, burgueses falidos e preconceituosos que não acompanharam o desenvolvimento global e agora colocam a culpa do desemprego por causa dos latinos, africanos, chineses, indianos, islâmicos e que tais imigrantes, de alguma forma, seja pela possibilidade de conseguir a dupla-nacionalidade em virtude de uma exploração de séculos destes mesmos burgueses de sangue azul, ou seja pela forma ilegal que se arriscaram atravessando fronteiras, mares, barreiras, línguas, para tentar oportunidades que pouco tiveram em suas terras natais, e agora disputam o mesmo emprego com tais europeus, muitos deles que procuram o primeiro emprego depois dos 25 anos de idade, muitos que não se sujeitam a limpar banheiros, muitos que protestam querendo 34 horas de trabalho/semana (sem redução salarial, óbvio), muitos que acham normal trabalhar apenas 1 ano para ter um ano de seguro-desemprego com 80% do salário, e assim mamar nas tetas de governos decadentes que não condicionaram o povo a ser competitivo num mundo interligado, sendo que são pessoas que sempre tiveram oportunidades, escolas gratuitas, inúmeros benefícios, mas que não desenvolveram garra para a sobrevivência, para a disputa de um emprego e, em tempos de crise, qualquer emprego, assim reclamam da tal “abertura”, exigindo, muitas vezes, mudanças racistas e radicais para expulsar os imigrantes.

Era uma vez um continente que viveu infinitas guerras em mais de dois milênios, e elas aconteceram porque estavam com algum tipo de crise econômica, impossibilitando um desenvolvimento harmonioso, impossibilitando o diálogo, e assim desenvolveram línguas próprias, culturas próprias que, em cabeças nacionalistas extremas, foram intolerantes ao diferente, e o maior exemplo foi o massacre a judeus num momento que a economia global patinava após a Crise de 29, achando que tais diferentes roubavam empregos e oportunidades daqueles “arianos superiores”, e essa histórica todos sabem como terminou.

Era uma vez um brasileiro paulista, 29 anos, filho de português e mineiro, misturado, formado, desempregado, às vezes depressivo, às vezes exaltado, hoje com remédio isso é controlado, que já viajou por mais de 20 países, morou em quatro deles, aprendeu a ser minoria, o inferiorizado, que lavou banheiro e foi garçom no continente decadente, que cortou lenha no país do dólar (nem tanto, agora) dominante, que foi até a fábrica do mundo negociar e conhecer a cultura milenar da paciência e competitividade, e que ficou descontente ao vivenciar, engravatado por meses, que a tal Organização das Nações Unidas não é tão unida e é pouco objetiva, enfim, esse paulista maluco que retornou à sua terra depois de outra experiência internacional acha que o filme, aquele com sangue, intolerância e destruição, pode se repetir naquele mesmo cenário de tantas outras guerras.

Esse mesmo paulista às vezes fala besteira, é imaginativo, porém é capaz de apostar uma empadinha de palmito que a intolerância, a crise econômica mundial, bolsas despencando, a perceptível falência de uma moeda, o aumento do desemprego, a insatisfação de jovens, o fortalecimento de redes de contatos de forma global, a facilidade do comércio de armas, a difusão de pensamentos racistas aceitos por muitos desses jovens insatisfeitos e despreparados, a crescente intolerância contra imigrantes e o extremismo religioso e nacionalista, ocorrida também no âmbito governamental, o descontrole emocional de minorias mais exaltadas, capazes de explodir e de se explodir, pessoas que depreciam a vida, enfim, todos esses pontos se somados resultarão numa previsível tragédia de grandes proporções.

Existe uma bomba relógio no mundo, principalmente na Europa, curiosamente o tal “berço da civilização”, em contagem regressiva que foi ativada pelo Homem, e cabe a esse mesmo ser vivo orgulhoso que pouco sabe viver em harmonia com a natureza e com seus semelhantes, resolver de forma racional, mudar o fluxo de ideologias e desenvolver uma consciência coletiva projetada para o futuro, aceitando recuar, reduzir, aceitando negociar, aceitando mudar alguma coisa em tais históricos princípios éticos, morais, religiosos, que hoje muito provam que estão errados.

É preciso mudar para construir outro tipo de história, quem sabe, para desativar essa nova bomba, prestes a explodir, e fazer esse mundo ser, realmente, suportável e sustentável.

Marcio Vieira

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